Se você mantiver sua mente humilde, o orgulho se dissipará como a névoa da manhã.
Quantas vezes durante o dia sentimos dor porque somos feridos no nosso orgulho? O orgulho, que é a exacerbação da importância de si mesmo, consiste em ficar apaixonado pelas poucas qualidades que possuímos e em imaginar que possuímos aquilo que nos falta. Ele atrapalha todo progresso pessoal, porque para aprender devemos primeiro acreditar que não sabemos. Diz o adágio tibetano: “A água das boas qualidades não se acumula no topo do rochedo do orgulho.” E: “A humildade é como um vaso colocado no chão, pronto para receber a chuva das qualidades.”
A humildade é um valor esquecido no mundo contemporâneo. A nossa obsessão com a imagem que temos que projetar de nós mesmos é tão forte, que paramos de questionar a validade das aparências e passamos a buscar incessantemente uma aparência melhor.
Que imagem de nós mesmos devemos projetar? Sabemos que os políticos e as estrelas de cinema têm “consultores de comunicação” cujo trabalho é forjar-lhes uma imagem favorável para o grande público, chegando às vezes a ensinar-lhes como sorrir! Pouco importa se essa imagem é o oposto do que eles verdadeiramente são, desde que ela os faça elogiados, reconhecidos, admirados, adulados. OS jornais dedicam cada vez mais espaço às colunas sociais, sobre as “pessoas que são notícia”, publicando as suas avaliações sobre quem está na moda e quem não está. Diante disso, que lugar resta para a humildade, um valor tão raro que poderia ser relegado ao museu das virtudes obsoletas?
O conceito de humildade é muitas vezes associado ao desprezo por si mesmo, à falta de confiança nas próprias capacidades, à depressão ligada a um sentimento de impotência e até a um complexo de inferioridade, um sentimento de menos valia ou de não ser digno. Isso é subestimar consideravelmente os benefícios da humildade, pois se a suficiência é privilégio do estúpido, a humildade é a virtude fecunda daquele que sabe quanto ainda tem que aprender e a extensão do caminho a ser percorrido. Diz S. Kirpal Singh: “A verdadeira humildade consiste em ser livre de toda consciência do eu, o que implica ser livre da própria consciência da humildade. O homem de fato humilde ignora a sua humildade.” Na ausência do sentimento de ser o centro do universo, ele está aberto para os outros e se situa na perspectiva justa da interdependência.
No plano coletivo, o orgulho se expressa na convicção de ser superior aos outros como nação, povo ou raça, ou de ser o guardião dos verdadeiros valores da civilização, e na necessidade de impor esse “modelo” dominante às pessoas ou povos “ignorantes” através de todos os meios que estejam ao seu alcance. Essa atitude muitas vezes é tomada como pretexto para “desenvolver” os recursos de países subdesenvolvidos. Os conquistadores e seu clero queimaram sem hesitar as imensas bibliotecas maias e astecas do México, das quais não sobreviveram mais do que uma dúzia de volumes. Os manuais escolares e os meios de comunicação de massa chineses ainda se aprazem em descrever os tibetanos como bárbaros retrógrados e o Dalai Lama como um monstro que, se ainda estivesse no Tibete, se alimentaria de cérebros de recém-nascidos, usando suas peles como tapete em seu quarto!
Foi o orgulho, acima de tudo, que fez com que os chineses ignorassem os milhares de volumes de filosofia abrigados nos monastérios budistas antes de demolir seis mil centros de aprendizagem.
De que maneira a humildade constitui um ingrediente da felicidade? Os arrogantes e os narcisistas se alimentam de fantasmas e ilusões que entram continuamente em conflito com a realidade. As desilusões inevitáveis que decorrem disso podem levar ao ódio de nós mesmos (quando percebemos que não conseguimos estar à altura das nossas expectativas) ou a um sentimento vazio interior. Com uma sabedoria em que não há lugar para as fanfarrices do eu, a humildade evita esses tormentos inúteis. Diferentemente da afetação, que tem necessidade de ser reconhecida para sobreviver, a humildade está ligada a uma grande liberdade interior.
O humilde não tem nada a perder e nada a ganhar. Se recebe um elogio, sente que é a sua humildade, e não ele próprio, que está sendo louvada. Se é criticado, considera que trazer as suas faltas à luz do dia é o melhor serviço que alguém poderia lhe prestar. “Poucas pessoas são suficientemente sábias para preferir a crítica útil ao elogio traiçoeiro”, escreveu La Rochefoucauld, fazendo eco aos sábios tibetanos que, de bom grado, nos recordam que “o melhor ensinamento é aquele que desmascara as nossas faltas escondidas”. Igualmente livre da esperança e do medo, a pessoa humildade permanece alegre e despreocupada.
A humildade é também uma atitude em essência voltada para os outros e para o bem-estar deles. Estudos de psicologia social mostraram que as pessoas que supervalorizam a si mesmas apresentam tendência para a agressividade superior à média. Esses estudos também colocaram em evidência uma ligação entre a humildade e a faculdade de perdoar . Aqueles que se consideram superiores julgam os erros dos outros com mais severidade e consideram-nos como menos perdoáveis.
Paradoxalmente, a humildade favorece a força do caráter: a pessoa humilde toma decisões tendo por base aquilo que considera certo, justo, sem se inquietar com a sua própria imagem ou a opinião dos outros. Como diz o provérbio tibetano: “Por fora, ele é dócil como um gatinho; por dentro, tão duro de dobrar quanto o pescoço de um iaque”. Essa determinação nada tem a ver com obstinação ou teimosia, surgindo da percepção lúcida de um objetivo significativo. É inútil tentar convencer o lenhador que conhece a floresta a tomar o caminho que leva ao precipício.
A humildade é uma qualidade sempre encontrada no sábio: podemos compará-lo a uma árvore cujos galhos, carregados de frutos, se curvam para o chão. Já o homem cheio de vaidade se parece mais com uma árvore nua, cujos galhos apontam com orgulho para cima. A humildade também se traduz em uma linguagem corporal desprovida de arrogância e ostentação. Nas viagens que fiz em companhia de Sua Santidade o Dalai Lama, vi com meus próprios olhos a imensa humildade, cheia de um amor bondoso, que tem esse homem universalmente reverenciado. Ele está sempre atento a todos e jamais se coloca como uma pessoa importante. Certo dia, quanto entrávamos em uma sala onde o Parlamento Europeu oferecia um banquete em sua honra, ele percebeu que os cozinheiros o observavam de trás de uma porta semi-aberta. Antes de mais nada dirigiu-se a eles para visitar a cozinha e pouco depois reapareceu, dizendo ao presidente e aos quinze vice-presidentes do Parlamento: “Que cheiro delicioso!” Uma excelente maneira de quebrar o gelo em uma refeição tão solene.
Testemunhar o reencontro de dois mestres espirituais é, do mesmo modo, uma fonte inesgotável de inspiração. Diferentemente das personalidades imbuídas de si, que fazem de tudo para ocupar o lugar de honra, os mestres “rivalizam” na humildade. Emocionei-me ao presenciar o encontro entre o Dalai Lama e Dilgo Khyentse Rimpoche: ambos se prostraram um diante do outro, ao mesmo tempo, tocando as cabeças quando estavam próximos ao solo. Dilgo Khyentse Rimpoche já estava bem idoso e Sua Santidade, mais ágil, inclinou-se três vezes diante de Dilgo Khyentse antes que este tivesse tempo de se levantar da sua primeira prostração. E o Dalai Lama, com isso, rompeu em gargalhadas.
Os ocidentais igualmente se surpreendem quando ouvem grandes eruditos ou meditadores do Oriente dizerem: “Nada sou e nada sei.” Acreditam que se trata de falsa modéstia ou de um hábito cultural, quando, na verdade, não passa pela cabeça desses sábios pensamentos do tipo “eu sou sábio” ou “eu sou um meditador realizado”. A humildade e o desinteresse natural que têm pela própria pessoa não significam que eles não tenham ciência de seu conhecimento e erudição, mas que esse aprendizado revela o quanto ainda há por saber. Uma vez compreendida, essa atitude pode ser tocante e até mesmo engraçada, como na ocasião em que participei de uma visita que dois grandes eruditos tibetanos fizeram a Dilgo Khyentse Rimpoche, no Nepal. O encontro desses homens notáveis foi cheio de graça e de uma alegre simplicidade. Durante a conversa, Khyentse Rimpoche pediu-lhes que dessem ensinamentos aos monges do monastério. Um dos eruditos respondeu com sinceridade: “Oh, mas eu não sei nada!” e, apontando para os eu colega, prosseguiu, dizendo: “E ele também não sabe!” Ele tinha certeza de que o outro erudito teria dito a mesma coisa. Este acenou com a cabeça, concordando.
Trecho do livro ”Felicidade